Nota de culpa deficiente / Decisão de despedimento
Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 3/12/2024
Processo n.º 1571/23.9T8BGC-B.G1
Relator Vera Sottomayor
Sumário:
«I- A nota de culpa não se pode cingir à indicação de comportamentos genéricos, obscuros e abstratos do trabalhador, ao invés deve conter factos concretos, localizados no tempo e no espaço, para que seja possível ao trabalhador ponderar e organizar corretamente a sua defesa.
II- É assim de concluir pela irregularidade de cada uma das notas de culpa com a consequente invalidade do procedimento disciplinar e ilicitude do despedimento nos termos do n.º 1 do art.º 382.º do CT. uma vez que não cumprem a exigência legal de conter a descrição circunstanciada dos factos que são imputados a cada uma das trabalhadoras. Ao invés, as referidas notas de culpa limitam-se a conter imputações conclusivas e genéricas, não se encontrando a minimamente concretizadas em termos descritivos as eventuais condutas praticadas que se subsumam àquelas expressões/afirmações, quando ocorreram, onde e em que circunstâncias.
III- A decisão de despedimento tem de ser fundamentada, o que significa que se tem de alicerçar nos factos que o empregador considere demonstrados no decurso do procedimento disciplinar, não podendo ser invocados factos que não constem da nota de culpa ou da resposta do trabalhador, salvo se atenuarem a sua responsabilidade. Contudo é admissível a fundamentação indireta, ou seja, por remissão para outra peça do processo, designadamente para a nota de culpa ou para o relatório final de instrução, caso este exista.»
Destaco, ainda:
i) Sobre as Notas de Culpa
Um dos processos
b) A “Nota de Culpa”, que consta de fls. 16 vº a 18 e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido, imputa à A. os seguintes factos:
1. A Trabalhadora AA foi admitida ao serviço da Entidade Empregadora mediante Contrato de Trabalho celebrado em ../../2023, com vista ao exercício das tarefas e funções de “Auxiliar de Serviços Gerais”;
2. De entre as suas tarefas, incumbia à Trabalhadora AA relacionar-se com os Utentes da Entidade Empregadora, prestando-lhes todo o apoio quotidiano necessário ao seu dia-a-dia;
3. De acordo com as declarações do Utente BB, obtidas em sede de Procedimento Prévio de Inquérito, este imputou à Trabalhadora AA a seguinte descrição de comportamentos:
“A AA agride-me verbalmente, essas agressões acontecem à bastante tempo, fala-me muito alto e com muita agressividade, tenho muito medo dela, já lhe pedi para me deixar em paz, sempre que entra no meu quarto fico muito assustado”.
4. A entidade Empregadora confirmou estas Declarações junto da psicóloga da Instituição, a Exma. Sra. Dra. DD.
5. Os factos relatados e circunstanciados materializam uma infracção muito grave dos deveres a que está obrigada a Trabalhadora AA, designadamente em face das funções exercidas, de contacto directo com os Utentes.
6. Estão em causa comportamentos real e manifestamente humilhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade do Utente BB, para além, naturalmente, de as condutas em causa consubstanciarem um tratamento violento, humilhante e degradante, não só com efeitos sobre o Utente em causa, mas, também, para os demais, em face do clima de medo e terror que tais comportamentos significam para o dia-a-dia da Instituição.
7. (…).
8. Os factos em causa consubstanciam, ainda, a prática do crime de maus-tratos, previsto e punido pelo artigo 152º-A, do Código Penal.
Outro dos processos
b) A “Nota de Culpa”, que consta de fls. 21 vº a 23 e cujo teor aqui se considera integralmente reproduzido, imputa à A. os seguintes factos:
1. A Trabalhadora CC foi admitida ao serviço da Entidade Empregadora mediante Contrato de Trabalho celebrado em ../../2022, com vista ao exercício das tarefas e funções de “Auxiliar de Acção Médica”;
2. De entre as suas tarefas, incumbia à Trabalhadora CC relacionar-se com os Utentes da Entidade Empregadora, prestando-lhes todo o apoio quotidiano necessário ao seu dia-a-dia;
3. De acordo com as declarações do Utente BB, obtidas em sede de Procedimento Prévio de Inquérito, este imputou à Trabalhadora CC a seguinte descrição de comportamentos:
“A CC sem motivo, encostou-me a cabeça ao peito dela e bateu-me três vezes na cabeça, fiquei com muito medo, tenho medo que voltem a entrar no meu quarto”.
4. A entidade Empregadora confirmou estas Declarações junto da psicóloga da Instituição, a Exma. Sra. Dra. DD.
5. Os factos relatados e circunstanciados materializam uma infracção muito grave dos deveres a que está obrigada a Trabalhadora CC, designadamente em face das funções exercidas, de contacto directo com os Utentes.
6. Estão em causa comportamentos real e manifestamente humilhantes, vexatórios e atentatórios da dignidade do Utente BB, para além, naturalmente, de as condutas em causa consubstanciarem um tratamento violento, humilhante e degradante, não só com efeitos sobre o Utente em causa, mas, também, para os demais, em face do clima de medo e terror que tais comportamentos significam para o dia-a-dia da Instituição.
7. (…).
8. Os factos em causa consubstanciam, ainda, a prática do crime de maus-tratos, previsto e punido pelo artigo 152º-A, do Código Penal.
Fundamentação
Analisadas as duas notas de culpa em causa constatamos que as descrições efetuadas relativamente aos episódios relatados referentes a cada uma das trabalhadoras terão de ser de considerados de vagos e genéricos desprovidos de qualquer factualidade que os permita situar no tempo, no modo e no lugar, não podendo por isso deixar de ser considerados de não circunstanciados. Foram episódios, relatados por um utente de forma vaga, sem qualquer indicação de tempo, lugar e modo, desprovidos de qualquer enquadramento circunstancial, podendo tais episódios ter ou não ocorrido há meses ou recentemente, o que torna, desde logo impossível a invocação de uma eventual caducidade.
Na verdade, da descrição efetuada em qualquer uma das notas de culpa não podemos de forma alguma concluir que as mesmas permitem, a cada uma das trabalhadoras, de forma segura, conhecer, ou reconhecer e situar no tempo o concreto comportamento que é imputado a cada uma delas, desde logo, porque os comportamentos estão relatados de forma conclusiva e desprovida de localização, sem que se consiga alcançar quando e onde teria ocorrido o concreto episódio a que o utente se pretendia referir. A expressão “agride-me verbalmente” nada elucida e a frase “encostou-me a cabeça ao peito dela e bateu-me três vezes na cabeça” também é muito pouco elucidativa, ficando sem se compreender, quando, como, onde e em que circunstâncias é que tal factualidade ocorreu.
É assim de concluir pela irregularidade de cada uma das notas de culpa com a consequente invalidade do procedimento disciplinar e ilicitude do despedimento nos termos do n.º 1 do art.º 382.º do CT. uma vez que não cumprem a exigência legal de conter a descrição circunstanciada dos factos que são imputados a cada uma das trabalhadoras. Ao invés, as referidas notas de culpa limitam-se a conter imputações conclusivas e genéricas, não se encontrando a minimamente concretizadas em termos descritivos as eventuais condutas praticadas que se subsumam àquelas expressões/afirmações, quando ocorreram, onde e em que circunstâncias.
ii) Sobre a decisão de despedimento
Um dos processos
v) Contrato de trabalho que cessou no dia 21/11/2023, data em que a A. recebeu da Ré a comunicação escrita que esta lhe dirigiu com data de 20-11-2023 e intitula de “Rescisão do Contrato de trabalho”.
Outro dos processos
f) A Ré remeteu para a A. comunicação de cessação contratual, datada de 20/NOV/2023 que intitula de “Rescisão do contrato de trabalho”, com o seguinte teor:
Assunto: Rescisão do contrato de trabalho.
Exma. Sra. CC.
Com referência ao contrato de trabalho, celebrado entre a Santa Casa da Misericórdia ... e V. Excia., no passado 10 de Março de 2022 vimos por este meio e nos termos do n.º 2 do artigo 351.º do Código do Trabalho, comunicar-lhe a nossa vontade de o fazer cessar, com efeitos a partir de 20 de Novembro de 2023, o contrato de trabalhado em vigor com esta instituição em virtude de da SANTA CASA DA MISERICÓRDIA ..., ter sido confrontada com fortes indícios de um comportamento irregular e lesivo dos interesses desta instituição e dos seus Utentes, com a consequente dedução da Nota de Culpa ao abrigo do disposto no artigo 353.º, n.º 1 do Código do Trabalho.
A partir do dia 21 de novembro de 2023 pode recolher na secretaria um Certificado de Trabalho ou qualquer outra documentação que V. Excia. considere pertinente.
Com os melhores cumprimentos.
O Provedor”
Fundamentação
A decisão do despedimento notificada a cada uma das trabalhadoras limita-se a comunicar a cessação do contrato de trabalho da iniciativa do empregador com referência às disposições legais que supostamente sustentam a decisão, sendo totalmente omissa quanto aos fundamentos de facto que determinaram o despedimento, nem sequer remete para a nota de culpa.
Da referida decisão não consta qualquer referência, expressa ou por remissão, aos factos que o empregador considerou provados e que justificaram o despedimento, nem da mesma resulta que tenha sido efetuada qualquer ponderação das circunstâncias concretas que permitiu concluir pela impossibilidade prática da subsistência do vínculo laboral, nem consta qualquer factualidade que permita concluir pela adequação do despedimento à culpabilidade das trabalhadoras.
Daqui decorre que qualquer uma das trabalhadoras quando receberam a decisão final – comunicação do despedimento, não tiveram completo conhecimento nem dos factos de que foram acusadas, nem da fundamentação subjacente à tomada dessa decisão, pois ao invés do afirmado pela recorrente, a decisão final não remete e forma expressa para a nota de culpa, limitando-se a mencioná-la sem que contenha qualquer referência, expressa ou por remissão, aos factos que o empregador considerou provados e que justificaram o despedimento.
Disponível aqui:
https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/429d4e942d1e41cf80258bee00361d7c?OpenDocument