O caso de uma apresentadora de televisão contra a TVI
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/01/2025, processo n.º 751/21.6T8CSC.L1.S1, relator Mário Belo Morgado
Sumário:
I. Entre as partes estabeleceu-se uma relação obrigacional que, com grande estabilidade, embora com vários hiatos, remonta ao ano de 2003.
II. Em 10.11.2010, já após a entrada em vigor do Código do Trabalho de 2009, surge um primeiro contrato escrito celebrado entre as partes, seguido de outro, outorgado em 22.02.2011, intitulados, respetivamente, “Contrato” e “Contrato de prestação de serviços”, nos quais se estipulou a revogação de todos os contratos anteriormente celebrados entre as partes com o mesmo objeto, tudo a evidenciar que o vínculo obrigacional estabelecido entre as partes se foi reconfigurando ao longo do tempo.
III. Neste contexto, à(s) relação(ões) jurídica(s) estabelecida(s) entre as partes a partir de 10.11.2010 é aplicável o Código do Trabalho de 2009.
IV. Encontrando-se verificados os elementos previstos nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 12.º deste diploma, presume-se a existência de um contrato de trabalho.
V. Em face do peso global de todos os elementos característicos de uma relação de trabalho autónomo que in casu se provaram, impõe-se considerar ilidida a presunção de laboralidade.
Destaca-se na fundamentação (transcrição)
11. Efetivamente, há várias situações profissionais em que é muito estreita a fronteira entre subordinação e autonomia e, nessa medida, entre o contrato de trabalho e outros tipos contratuais (maxime, o contrato de prestação de serviço), realidade que vem suscitando acrescidas dificuldades de enquadramento jurídico no contexto atual, marcado pelas novas tecnologias e por novas formas de organização do trabalho, traduzidas, nomeadamente, nas mais diversas modalidades de flexibilidade e mobilidade laboral, maior autonomia técnica dos trabalhadores e pela diluição de vários dos elementos tradicionalmente presentes numa abordagem rígida do conceito de subordinação jurídica.
Estas zonas cinzentas estão com frequência presentes nas relações que se estabelecem entre as empresas de comunicação social e os seus colaboradores: umas vezes estes desenvolvem a sua atividade como freelancer e noutras integram os quadros da empresa; mas, na sequência das crescentes dinâmicas de flexibilidade organizativa que neste ramo se fazem sentir, a verdade é que as relações de emprego atípicas se vão tornando cada vez mais típicas.
Com frequência, trabalhadores ditos independentes são economicamente dependentes da empresa em que desenvolvem a sua atividade, não raro ao longo de vários anos e em situação de exclusividade. Acresce que em muitos casos eles trabalham nas instalações da empresa, utilizam equipamentos desta e executam tarefas semelhantes às dos seus “colegas” formalmente assalariados, relativamente aos quais nem sempre se evidencia uma diferença nítida em termos de inserção na estrutura organizativa.
Vale dizer que o trabalho baseado em projetos (muito comum em televisão), realizada por conta de um empregador específico, consistente em tarefas definidas e com objetivos e resultados previamente estabelecidos, tanto pode ser realizado por trabalhadores realmente independentes (freelancer), por trabalhadores economicamente dependentes ou por trabalhadores assumidamente detentores de um vínculo laboral. Todo um campo privilegiado, pois, para relações de trabalho pouco claras, ambíguas ou encobertas.
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15. Tendo em conta a natureza da atividade desenvolvida pela autora, incompatível com um posto de trabalho fixo e com um horário de trabalho com horas de início e termo pré-definidos, é patente que no caso em apreço, para efeitos da alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º do CT, não podem deixar de considerar-se local de trabalho todos os locais pertencentes ao beneficiário da prestação ou às produtoras externas dos programas, ou seja, todos os locais onde, para além da emissão dos programas, eram realizadas as necessárias atividades preparatórias, complementares ou acessórias.
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17. Em suma, encontram-se verificados os elementos previstos nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 12.º do CT, pelo que se presume a existência de um contrato de trabalho entre as partes.
Todavia, não pode deixar de sinalizar-se que, na situação em análise, pese embora constituam base suficiente para o funcionamento da afirmada presunção, os factos atinentes ao local de trabalho e ao horário da prestação são compatíveis com qualquer das modalidades de vínculo obrigacional em confronto, uma vez que o circunstancialismo apurado neste âmbito é o caracteristicamente verificado na atividade em causa, independentemente da natureza do contrato.
Já quanto ao condicionalismo previsto na alínea b) da mesma disposição legal, de forma alguma se pode considerar preenchido, uma vez que “a A. não tinha nenhum instrumento de trabalho fornecido pela Ré TVI, suportando aquela diretamente todos os custos decorrentes da aquisição desses equipamentos, os quais eram relevantes para a prestação da sua atividade, com exceção do microfone e/ou auriculares que fazem parte do sistema de som do programa a gravar” (facto nº 159).
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Com efeito, embora o nomen juris utilizado pelas partes na titulação formal dada ao contrato não seja fator decisivo quanto à sua qualificação (e muito menos, naturalmente, no tocante à determinação da correspondente disciplina jurídica), ele é um dos elementos auxiliares a ter em consideração no esforço interpretativo para alcançar o real sentido das declarações de vontade, sobretudo quando os contraentes são pessoas esclarecidas e no contrato figuram cláusulas características do correspondente tipo negocial.
18.2. Do contrato subscrito em 10.11.2010, apenas intitulado “Contrato”, decorre que o seu objeto é referenciado como prestação de serviços (cfr. cláusulas primeira, segunda, terceira e sétima), sendo o documento datado de 22.02.2011 denominado “Contrato de prestação de serviços.
É de presumir que uma pessoa como a autora, naturalmente dotada de padrões culturais diferenciados, tivesse consciência do significado/alcance dos documentos assim assinados e que conhecesse a diferença existente entre os contratos de trabalho e de prestação de serviço, bem como as implicações jurídicas e práticas inerentes à seleção de uma ou outra destas categorias, sendo certo que o clausulado inserto em tais documentos é no essencial característico de uma relação jurídica de carácter autónomo.
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Todavia, apesar da longevidade desta ligação, constata-se que a mesma conheceu sofreu várias interrupções e períodos de descontinuidade, fator que na solução do litígio assume relevância determinante, dada a sua incompatibilidade com a permanência suposta numa relação laboral.
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A este propósito, conexamente, importa ainda considerar que nos períodos em que à A. não estava atribuído qualquer programa ela não tinha qualquer colaboração com a R. TVI (nº 114 dos factos provados); que durante os períodos em que a A. não tinha qualquer programa atribuído nunca reclamou da R. qualquer “direito” a que lhe fosse atribuído algum trabalho (nº 119 dos factos provados); que quando a A. não prestava a sua atividade à R. não recebia qualquer montante (nº 137 dos factos provados); e que a A. era livre de não aceitar as propostas que a R. lhe apresentava, tendo recusado participar em programas para os quais havia sido convidada (cfr. nº 152 dos factos provados).
Associado a esta intermitência, acresce, também muito significativamente, que “a A. sempre foi contratada “à peça” ou seja, era convidada para a apresentação de um determinado programa e recebia especificamente pelos programas que apresentava” (nº 113 dos factos provados e ainda, no mesmo sentido, v.g. os nºs 44, 48, 56, 57, 59, 62, 63, 66, 68, 71, 75, 77, 79, 81 e 89), sendo certo que “o contrato de prestação de serviço tem habitualmente uma remuneração calculada em função do resultado atingido [ou da atividade desenvolvida], ao passo que no contrato de trabalho a retribuição é usualmente calculada em função do tempo de trabalho.
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