Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte
De 09/05/2024, processo n.º 00162/21.3BEMDL
Relator Irene Isabel Gomes das Neves
Disponível aqui.
Sumário:
I. Na fixação do sentido e alcance de uma norma, a par da apreensão literal do texto, intervêm elementos lógicos de ordem sistemática, histórica e teleológica.
II. Nos termos do artigo 303º, n.º 1 al. b) do Código de Trabalho, não é devido pagamento de contribuições a cargo da entidade empregadora sobre os montantes pagos, a título de compensação retributiva aos trabalhadores em situação de redução temporária do período normal de trabalho ou suspensão do contrato de trabalho, vulgo lay-off, ao abrigo do regime previsto no Código do Trabalho.
Factos provados (excertos):
6. A Impugnante iniciou no dia 20 de março de 2020, o procedimento de suspensão dos contratos de trabalho da generalidade dos seus trabalhadores (Lay-off), seguindo os trâmites previstos no artigo 298.º e ss. do Código de Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de fevereiro – artºs 35.º e doc 4 da PI e art.º 4.º da contestação;
7. A maioria dos contratos de trabalho que foram abrangidos pelo Lay-off estiveram suspensos desde 16 de Abril de 2020 até 31 de Dezembro de 2020 - artºs 35.º da PI e doc 4; e art.º e art.ºs 4.º e 5.º da contestação;
8. Enquanto estiveram em lay off, os trabalhadores da Impugnante auferiram as compensações retributivas de acordo com o doc 3 da PI, e que aqui se dá por integralmente reproduzido, e que referem aos meses de Abril de 2020 a Novembro de 2020;
9. Durante aquele período de oito meses (Abril a Novembro de 2020), a Autora não procedeu ao pagamento das contribuições a cargo da entidade empregadora, relativas aos montantes pagos – este facto retira-se dos art.ºs 44.º e ss da PI e do art.º 6.º da contestação.
Fundamentação da Primeira Instância (excertos):
Ora, no caso dos autos, não vemos uma actividade desenvolvida pelos trabalhadores da Impugnante desde o procedimento de lay off, porque, precisamente, houve uma suspensão dos contratos de trabalho. Sendo certo que compete ao empregador, durante o período de redução ou suspensão, “Pagar pontualmente as contribuições para a segurança social sobre a retribuição auferida pelos trabalhadores” – art.º 303, n.º 1, al. b) do CT (sublinhado nosso) -, também é certo que inexistiu actividade desenvolvida pelos trabalhadores da Impugnante, não sendo, por isso, remunerados, mas sim compensados pela situação em que se encontravam. Ora, se os trabalhadores não foram remunerados pela “força de trabalho por eles oferecida” à Impugnante, também não são devidas as contribuições à Segurança Social que aqui se discutem. Pela resolução desta questão fica prejudicado o conhecimento das outras suscitadas pela Impugnante.
Fundamentação da Segunda Instância (excertos):
Assim, cientes de que estamos no âmbito de um procedimento de Lay-Off tradicional ou clássico, e perante os factos assentes, cumpre dar resposta à questão primordial, a qual foi apreciada pelo Tribunal a quo, qual seja, a de saber se no caso do Lay-off convocado pela Recorrida ao abrigo dos artigos 298º e ss. do Código de Trabalho a compensação retributiva paga ao trabalhador suspenso constitui base de incidência contributiva do empregador à segurança social?
(...)
Pelo exposto, seria de revogar a sentença sob recurso, por não os revermos no seu discurso fundamentador in totum.
Mas cumpre prosseguir, pois se bem que este Tribunal ad quem, não se reveja na posição de “retribuição” enquanto prestação efectiva de trabalho em que o Tribunal a quo fundou o seu julgamento, cumpre responder à questão supra formulada, qual seja, se a compensação retributiva paga ao trabalhador suspenso constitui base de incidência contributiva do empregador à segurança social?
Resposta essa, que logra acolhimento na interpretação e aplicação das normas legais do regime Lay-off do Código Trabalho, mais concretamente do seu artigo 303º, que determina quais os “deveres do empregador no período ou redução ou suspensão”.
Preceitua o artigo 303º do Código de Trabalho que;
“Deveres do empregador no período de redução ou suspensão
1— Durante o período de redução ou suspensão o empregador deve:
a)
b) Pagar pontualmente as contribuições para a segurança social sobre a retribuição auferida pelos trabalhadores;
(…)” (sublinhado nosso)
E, o artigo 304º, do mesmo diploma, referindo-se ao trabalhador determina que:
“Deveres do trabalhador no período de redução ou suspensão
1 — Durante o período de redução ou suspensão, o trabalhador deve:
a) Pagar contribuições para a segurança social com base na retribuição auferida e na compensação retributiva;
(...) ". (sublinhado nosso).
Como interpretar o artigo 303º, n.º 1 al. b) do Código de trabalho?
(...)
Expostas estas ideias genéricas sobre a interpretação das normas passamos a apurar o sentido da norma em questão: “Pagar pontualmente as contribuições para a segurança social sobre a retribuição auferida pelos trabalhadores.”
Vamos começar pela interpretação literal, pois é o primeiro estádio da interpretação, pois que, o texto da lei forma o substrato de que se deve partir e em que deve repousar.
O termo utilizado é tão só “retribuição”, o que por si só numa interpretação literal, seriamos levados a crer que apenas pretenderia atender ao conceito de retribuição, o que nos reconduz para o supra exposto e, nos permite, considerar aqui o mesmo com referência a sua expressão mais lata de “constituir retribuição qualquer prestação do empregador ao trabalhador” e, ela contemplaria a “compensação retributiva”.
Razão pela qual cumpre, desde logo atentar ao seu elemento sistemático, o qual compreende a consideração de outras disposições que formam o complexo normativo, mormente o seu lugar sistemático.
É que, no artigo 304º, em referência aos deveres do trabalhador, o legislador foi mais longe e explicito ao preceituar que “Pagar contribuições para a segurança social com base na retribuição auferida e na compensação retributiva.”, o que nos impõem irmos mais longe e alcançar se perante este elemento diferenciador na utilização dos termos, foi propósito do legislador afastar o pagamento de contribuições por parte do empregador no que concerne à compensação retributiva, limitando a mesma a “retribuição”, pois que na contraposição dos dois artigos em referência concluímos que retribuição e compensação retributiva, revestem realidades com tratamentos distintos. Se, assim não fosse, o legislador no artigo 304º, com referência ao trabalhador mantinha a mesma redacção do artigo 303º, aludindo tão só à “retribuição auferida”.
Para tanto, cumpre recorrer ao elemento histórico, a história do preceito, as fontes da lei e os trabalhos preparatórios e, ao elemento racional ou teleológico, que consiste na razão de ser da norma (ratio legis), no fim visado pelo legislador ao editar a norma, nas soluções que tem em vista e que pretende realizar.
Numa breve referência aos sucessivos preceitos legais do regime jurídico do Lay-off, desde a previsão legal no Dec. Lei n° 398/83, de 2 de novembro até ao atual Código do Trabalho, centrando-nos no dever de pagamento de contribuições para a segurança social a cargo do empregador, com ênfase na terminologia adoptada pelo legislador nas sucessivas disposições legais, temos que:
a) No âmbito do regime introduzido no nosso ordenamento jurídico pelo Dec. Lei n° 398/83, estabelecia o “Artigo 7. °
(Obrigações dos trabalhadores)
1— Durante o período de redução ou suspensão, constituem obrigações dos trabalhadores:
a) Pagar, mediante desconto, contribuições para a segurança social com base na retribuição efetivamente auferida, seja a título de remuneração por trabalho prestado, seja a título de compensação salarial;
(…)”.
E o "Artigo 10. °
(Obrigações da entidade empregadora)
7 — Durante o período de redução ou suspensão a entidade empregadora fica obrigada a:
a) (..);
b) Efetuar pontualmente o pagamento das contribuições para a segurança social referentes à retribuição efetivamente auferida pelo trabalhador,'
(..) ". (sublinhados nossos)
b) No mesmo sentido, o Código do Trabalho de 2003, aprovado pela Lei n° 99/2003, de 27 de agosto, estipulava nos artigos 342° e 345° o seguinte:
"Artigo 342. °
Deveres do empregador
1 — Durante o período de redução ou suspensão o empregador fica obrigado a:
(…);
b) Pagar pontualmente as contribuições para a segurança social referentes à retribuição efetivamente auferida pelo trabalhador;
(…)”
"Artigo 345.°
Deveres do trabalhador
1— Durante o período de redução ou suspensão, constituem deveres do trabalhador:
a) Pagar, mediante desconto, contribuições para a segurança social com base na retribuição efetivamente auferida, seja a título de contrapartida do trabalho prestado, seja a título de compensação retributiva;
(...)". (sublinhados nossos)
Em conformidade, com as disposições legais transcritas, é manifesto que da parte dos deveres do trabalhador o regime da legal do Lay-off permaneceu sempre incólume na concretização e manifestação expressa que da parte do trabalhador existe a obrigação de pagar contribuições para a segurança social com base na retribuição auferida e na compensação retributiva, nos casos de redução ou suspensão do contrato de trabalho.
No que tange ao empregador, apesar de alterar a expressão utilizada, vejamos que antes se aludia a “retribuição efectivamente auferida pelo trabalhador” para na versão do Código de Trabalho de 2003, referir “sobre a retribuição auferida pelos trabalhadores”, certo é que nunca foi estabelecida qualquer referência àquela obrigação recair sobre a compensação retributiva, que atento o elemento histórico e sistemático, nos leva a concluir que essa foi a vontade expressa do legislador, que complementada pela literal decorrente do confronto das redacções diferenciadas entre empregador e trabalhador, pretendeu excluir daquela contribuição para a segurança social por parte do empregador os valores auferidos pelo trabalhador a título de compensação retributiva.
E, de encontro ao que acabamos de concluir, tome-se em linha de conta o teor do Despacho Conjunto do Secretário de Estado Adjunto do Ministro do Emprego e da Segurança Social e do Secretário de Estado da Segurança Social, de 25.06.1990, publicado no Diário da República, II Série, de 11-07-1990, que a pretexto de uniformizar aplicação do artigo 10º do Decreto lei n.º 398/83, determinou que “"As contribuições a pagar à Segurança Social pelas entidades empregadoras em regime de lay-off são referentes, nos termos da al. b) do n.° 1 do art. 10.°, à retribuição efectivamente paga pelas mesmas entidades empregadoras, ou seja, ao valor da retribuição paga nos termos da al. a) do n.° 1 ou do n.° 2 do artigo 6.°, incluindo a compensação salarial, em caso de redução do período normal de trabalho, ou ao valor da compensação salarial, em caso de suspensão do contrato de trabalho.". Pois, se dúvidas se travavam nos tempos idos de 1990, não se compreende porque o legislador em 2003 e 2009, não transcreveu para os normativos 342º e, actualmente 303º do Código de Trabalho, respectivamente, a inclusão da compensação retributiva para o empregador, à luz do preceito sobre os deveres do trabalhador e do Despacho Conjunto referenciado.
Com efeito, de acordo com os sucessivos regimes jurídicos aplicáveis, reforçado com as dúvidas que existiam e levaram a aclaração contida no referido Despacho conjunto de 1990, parece-nos pacífico que o legislador, ao alterar a redação àquele preceito legal em 2009, pretendeu, em ultima ratio, manter o sentido literal do artigo em causa atenta a sua inserção sistemática, pois que perante o teor do emanado naquele Despacho optou por não verter o seu conteúdo para o artigo 303º, para o que bastava aderir a expressão “seja a título de compensação retributiva” utilizada no artigo 304º.
Posto isto, este Tribunal ad quem na melhor interpretação e aplicação do artigo 303º, n.º 1 al. b) do Código de Trabalho, considera que a compensação retributiva paga ao trabalhador não constitui base de incidência contributiva para efeitos de segurança social na parte referente ao pagamento de contribuições a cargo da entidade empregadora.
Por todo o exposto, somos de negar provimentos ao recurso, e manter o sentido da decisão recorrida com a presente fundamentação.