Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/12/2024
Processo n.º 503/23.9T8LRS.L1.S1
Relator José Eduardo Sapateiro
Sumário:
I - O dever de lealdade radica-se, desde logo, no dever geral de boa-fé que se mostra previsto, por exemplo, no artigo 126.º, número 1 do Código do Trabalho de 2009 e encontra-se especificado, como uma das obrigações contratuais e legais dos trabalhadores, na alínea f) do número 1 do artigo 128.º do mesmo diploma legal, ainda que sem reflexo expresso e direto na enumeração – exemplificativa, realce-se - das causas de despedimento unilateral por iniciativa do empregador do número 2 do artigo 351.º do CT/2009.
II – A violação do dever de lealdade pode assumir distintas vertentes e cambiantes – por exemplo e entre muitas outras, divulgação de informações confidenciais junto de outras empresas do ramo, queixas anónimas ou identificadas que, acerca da organização e funcionamento da empregadora, sejam divulgadas, em moldes imediatos, à comunicação social e ao público em geral, ocultação de dados essenciais e obrigatórios, de cariz porfissional ou institucional à entidade patronal, etc. -, sendo as mais vulgares as ligadas à concorrência desleal levada a cabo pelos trabalhadores por referência às suas empregadoras, com a constituição de sociedades com idêntico objeto ou objetos afins e/ou o desenvolvimento individualizado de atividade paralela e similar à laboralmente executada, dentro do mesmo setor produtivo [aqui encarado em termos latos] daquelas, em termos de competirem, confrontarem ou conflituarem de forma mais ou menos direta com a sua prestação económica de bens e serviços, independemente de, com tais condutas prejudicarem ou não, em termos efetivos, as suas entidades patronais.
III - A prova efetuada pela empregadora não se revela suficiente para se poder afirmar, de uma forma consequente, incisiva, objetiva, segura, que a trabalhadora assumiu os demonstrados comportamentos próprios de mediadora imobiliária durante os períodos de baixa médica e em expressa violação das restrições medicamente impostas pelo médico que emitiu os respetivos certificados.
IV - Não existindo qualquer obrigação contratual da parte da trabalhadora para com a empregadora no sentido de laborar apenas, em termos remunerados, para esta última, nada impedia, em princípio, que a recorrida assumisse, por conta de outrém ou por conta própria, uma outra atividade profissional, se bem que esta última não deveria, em regra, obstar, dificultar ou, simplesmente, perturbar as funções contratadas com a Ré de Tripulante de Cabine.
V - Em regra, não existe uma obrigação do trabalhador em informar a sua empregadora de que executa essa outra atividade não concorrente e paralela às funções profissionais que para ela assegura, quando a mesma é esporádica, irregular, sem carácter constante ou, pelo menos, frequente [não faz qualquer sentido impor a um trabalhador que comunique à sua entidade patronal que trabalha, ocasionalmente, como ... ou ... ou numa ... qualquer ou que, também, nos seus tempos livres faz ... ou ... num bar ou é, por vezes, esporadicamente, ..., cuidador de ... ou ... ou vendedor de ..., ..., ... ou outros bens ou serviços.
VI - Quando essa sua segunda atividade assume já um cariz profissional, mais ou menos certo e permanente, em que o número de horas semanal ou mensalmente prestadas são significativas, existe, nem que seja por razões de saúde e segurança do trabalhador no desenvolvimento da atividade principal, o dever deste último informar a sua empregadora dessa outra profissão ou profissões secundárias.
VII - No caso dos autos e ainda que a segunda atividade da Autora apenas se evidencie durante cerca de 3 meses e relativamente a atos que não permitem assegurar que queria fazer ou veio a fazer dela uma segunda profissão [secundária], certo é que a recorrida era Tripulante de Cabine e a atividade económica da TAP é o do transporte aéreo de passageiros e mercadorias, onde são conhecidas as exigências acrescidas de segurança e saúde dos respetivos trabalhadores, por referência, designadamente, aos tempos de trabalho e de descanso dos mesmos, o que impunha à Autora informar a Ré de que era sua intenção desenvolver a atividade de mediadora imobiliária e de que estava a obter formação para o efeito.
VIII - Tendo em atenção o quadro factual constante dos autos e os anos de atividade da recorrida para com a recorrente [durante 17 anos e 10 meses], tal infração disciplinar [não comunicação à empregadora da atividade profissional secundária] é de diminuta gravidade e insuscetível, nos termos e para os efeitos do número 1 do artigo 351.º do Código do Trabalho de 2009, de fundar o despedimento com justa causa promovido pela Ré contra a Autora, por não tornar imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral existente.
Destaque do Relatório (transcrição):
Ou seja, no dever de guardar lealdade ao empregador, está contido um dever de honestidade que implica uma obrigação de abstenção de qualquer comportamento que possa fazer desaparecer a relação de confiança (enquanto obrigação de conteúdo mais amplo) que se move nas coordenadas impostas pelo princípio da boa-fé.
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No caso dos autos, o que se passou foi que a autora durante os mesmos períodos de tempo em que esteve ausente do trabalho por incapacidade temporária de exercer a sua atividade de tripulante de cabine ao serviço da ré, mantinha com um terceiro um contrato de prestação de serviços de angariadora imobiliária, tendo executado alguns atos próprios desta atividade, nomeadamente atos tendentes à divulgação de imóveis que se encontravam para venda e de informações sobre o negócio imobiliário, através de publicações das redes sociais.
Ora, não resulta dos autos que a autora estivesse contratual ou convencionalmente vinculada a qualquer dever de exclusividade perante a ré, pelo que lhe era lícito exercer outra atividade em simultâneo com a que desempenhava ao serviço da ré, desde que, como se verifica na situação em apreço, não se tratasse de atividade concorrente daquela a que se dedica a ré.
Ainda assim, não se pode deixar de considerar que, mesmo sendo legítimo o exercício de outra atividade pela autora durante os períodos de incapacidade temporária para o trabalho, nos termos do disposto pelo art.º 109.º, n.º 3 do Código do Trabalho, impendia sobre ela, pelo menos o dever de dar conhecimento à ré de que tal se verificava, já que do nosso ponto de vista está em causa uma circunstância relevante [5].
Na verdade, tendo o empregador interesse na recuperação de quem contratou para lhe prestar trabalho, é merecedora de tutela a expectativa do empregador de que o trabalhar ausente por doença que o incapacita de exercer a sua atividade profissional, não se encontre no mesmo período, durante o qual se mantêm todas as obrigações da empregadora não dependentes da efetiva prestação de trabalho, a exercer outra atividade, designadamente uma atividade remunerada [6].
E é relevante para a empregadora, sobretudo por questões de verdade do relacionamento, suscetíveis de contender com a confiança que deposita nos trabalhadores, o conhecimento de que um seu trabalhador tem uma outra atividade e sobretudo, que tendo-a, não esconde essa informação do empregador.
Nessa medida, a autora, foi no mínimo imprudente, sendo a sua atuação suscetível de pôr em causa a obrigação de boa-fé na execução do contrato de trabalho, violando, por isso, culposamente, o dever de lealdade.
A autora praticou, pois, infração disciplinar, entendida esta como a violação culposa, por ação ou omissão, dos deveres que para o trabalhador resultam do contrato de trabalho ou da lei [7].
A questão que se coloca é a de saber se essa infração disciplinar foi de tal modo grave que se justifique a sanção de despedimento, aplicada pela ré, ou seja, saber se a atuação da autora tornou impossível a subsistência da relação de trabalho com o sentido que já explicitámos acima, o que entronca com a obrigação de proporcionalidade entre a gravidade da infração e a culpa do trabalhador, por um lado, e a sanção disciplinar por outro (art.º 330.º, n.º 1 e 351.º, n.º 1, ambos do Código do Trabalho).
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No caso dos autos, apesar de termos concluído que a autora praticou infração disciplinar, a sanção de despedimento afigura-se excessiva, porquanto ao factos não demonstram que a manutenção da relação de trabalho se tenha tornado impossível.
Não podemos perder de vista que a infração imputável à autora ainda que configure a violação de dever de lealdade, é a omissão de informar a ré do exercício de outra atividade durante a “baixa médica” e não qualquer outra, o que, sendo o exercício de tal atividade lícita, constitui uma infração de reduzida gravidade.
De resto, não se apurou que a atuação da autora tenha determinado agravamento, mesmo que potencial, do estado de saúde que a impedida de prestar trabalho à ré, ou o prolongamento do impedimento, nem que tenha causado qualquer concreto prejuízo à ré.
Por outro lado, não se pode ignorar que a autora tinha cerca de 7 anos de antiguidade, sem que seja conhecida a prática de qualquer outra infração disciplinar.
Tudo ponderado, podemos afirmar que, no caso dos autos, é ainda positivo o juízo de prognose sobre a viabilidade da relação laboral, por se manterem as condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, para o que releva ainda a dimensão da ré, no seio da qual as relações pessoais entre a trabalhadora e a empregadora se apresentam diluídas.
Isto é, à luz das palavras de Pedro Furtado Martins, que acima transcrevemos, a continuidade do vínculo não representa uma insuportável e injusta imposição ao empregador.
Destaque da Fundamentação do STJ (transcrição) [nota adicional - na fundamentação, há uma resenha de casos julgados no STJ sobre o dever de lealdade]
Importa, nesta matéria, frisar, desde logo, o óbvio: a atividade de mediação imobiliária que a Autora tenciona[va] levar a cabo não é minimamente concorrente com a atividade económica da Ré recorrente, não se podendo, por tal motivo e nessa medida, encarar a alegada violação do dever de lealdade nessa faceta de competição desleal com a mesma, que deixámos antes enunciada.
Tal violação prende-se antes e em tese com a circunstância de a recorrida não ter informado oportunamente a sua entidade empregadora de que andava a ter formação e tinha o propósito de ser mediadora imobiliária por conta da R..., em simultâneo com as funções que desenvolvia profissionalmente para a TAP, como tripulante de cabine e de que terá, durante o período em que esteve de baixa por doença, executado diversos atos que se enquadram na aludida atividade de mediação imobiliária e que, pela sua natureza, seriam violadores das condições em que a dita baixa lhe foi concedida.
Adiantemos desde já a nossa posição quanto ao último aspeto assinalado para dizer que a prova efetuada pela recorrente não se revela suficiente para se poder afirmar, de uma forma consequente, incisiva, objetiva, segura, que a recorrida assumiu os demonstrados comportamentos próprios de mediadora imobiliária durante os períodos de baixa médica e em expressa violação das restrições medicamente impostas pelo médico que emitiu os respetivos certificados.
Faça-se notar que a formação de mediadora imobiliária foi realizada durante as férias pessoais da Autora, interessando ainda recordar que aqueles períodos de baixa não foram todos seguidos e consecutivos, que só parte dos certificados por incapacidade temporária determinavam a permanência da trabalhadora em casa – sem prejuízo dos exames médicos que tivesse de efetuar - e que, durante parte de tal baixa, a Autora sujeitou-se a diversos tratamentos para a cura ou, pelo menos, estabilização e controlo dos problemas que tinha ao nível do ouvido direito e que a impediam de voar – cf. Pontos de Facto xvi. a xvii.].
Dir-se-á agora, quanto ao primeiro aspeto, que não ressalta dos autos um qualquer cenário de exclusividade de funções por parte da Autora para com a Ré, ou seja, não existia qualquer obrigação contratual de parte da primeira no sentido de laborar apenas, em termos remunerados, para a segunda; logo, nada impedia, em princípio, que a recorrida assumisse, por conta de outrém ou por conta própria, uma outra atividade profissional, se bem que esta última não deveria, em regra, obstar, dificultar ou, simplesmente, perturbar as funções contratadas com a Ré de Tripulante de Cabine.
Afigura-se-nos, por outro lado, que, em regra e salvo se implicar sobreposição de horários ou brigar com as regras de segurança e saúde no trabalho, não existe uma obrigação do trabalhador em informar a sua empregadora de que executa essa outra atividade [não concorrente, naturalmente] e paralela às funções profissionais que para ela assegura, quando a mesma é esporádica, irregular, sem carácter constante ou, pelo menos, frequente [não faz qualquer sentido impor a um trabalhador que comunique à sua entidade patronal que trabalha, ocasionalmente, como ... ou ... ou numa loja qualquer ou que, também, nos seus tempos livres, faz ... ou ... num bar ou é, por vezes, esporadicamente, ..., cuidador de ... ou ... ou vendedor de ..., ..., ... ou outros bens ou serviços].
Pensamos, contudo, que quando essa sua segunda atividade assume já um cariz profissional, mais ou menos certo e permanente, em que o número de horas semanal ou mensalmente prestadas é significativo, existe, nem que seja por razões de saúde e segurança do trabalhador no desenvolvimento da atividade principal, o dever de o trabalhador informar a sua empregadora dessa outra profissão ou profissões [chamemos-lhe assim por facilidade de exposição].
No caso dos autos e ainda que a segunda atividade da Autora apenas se evidencie durante cerca de 3 meses e relativamente a atos que não permitem assegurar que queria fazer ou veio a fazer dela uma segunda profissão [secundária], certo é que a recorrida era Tripulante de Cabine e a atividade económica da TAP é o do transporte aéreo de passageiros e mercadorias, onde são conhecidas as exigências acrescidas de segurança e saúde dos respetivos trabalhadores, por referência, designadamente, aos tempos de trabalho e de descanso dos mesmos, o que impunha à Autora que informasse a Ré de que era sua intenção desenvolver a atividade de mediadora imobiliária e de que estava a obter formação para o efeito.
Tal, contudo, não aconteceu, constituindo, nessa medida, a violação de um dever funcional da trabalhadora para com a sua empregadora mas convirá não olvidar que os factos em causa tiveram lugar, nos meses de fevereiro a abril de 2022, quando ocorreu a dita formação e atividade de mediadora [ainda que sem resultados palpáveis, pois a trabalhadora não vendeu nenhum imóvel], sendo certo que a Autora, em alguns desses períodos temporais não voou por se encontrar de baixa por força de um acidente de trabalho e depois por doença natural.
Ora, tendo em atenção o quadro factual descrito e os anos de atividade da recorrida para com a recorrente [durante 17 anos e 10 meses], é manifesto que tal infração disciplinar é de relativa gravidade e não é suscetível, nos termos e para os efeitos do número 1 do artigo 351.º do Código do Trabalho de 2009, de fundar o despedimento com justa causa promovido pela Ré contra a Autora, por não tornar imediata e praticamente impossível a subsistência do vínculo laboral existente.
Neste contexto, não se pode concluir que era inexigível à ré a manutenção do contrato de trabalho, já que a atuação da autora não é de tal modo grave que se possa ou deva considerar definitivamente quebrada a relação de confiança que constitui uma das bases do contrato. A censura à atuação da autora era devida, mas através de sanção conservatória de entre as previstas pelo art.º 328.º do Código do Trabalho, sendo o despedimento manifestamente desproporcional à gravidade da infração.
Consequentemente, ainda que com fundamento parcialmente diferente, é de confirmar a sentença recorrida ao concluir pela inexistência de justa causa e, consequentemente, pela ilicitude do despedimento da autora, com as consequências ali extraídas.
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